“Eu disse uma vez que escrever é uma maldição. Não me lembro por que exatamente eu disse, e com sinceridade. Hoje repito: é uma maldição, mas uma maldição que salva”
Clarice Lispector in “A descoberta do mundo”
O instante é cinzento, o céu escuro sem estrelas, a noite é banhada com certo receio e alegria, daí a impossibilidade em escrever. Escrever é estar grávido de ideias, ou antes, é sentir no profundo do corpo, das veias, dos músculos, uma inquietação ainda sem forma de expressão senão visceral. As palavras ainda repousam em estado de fecundação, mas o parto da escrita espera a hora própria da chegada. Chegou, veio, apareceram associações, o milagre se fez nesse instante de criatividade, nesse instante de viver.
Senti: não almejo usar na escrita desse instante uma tonalidade de Lá Maior, cheia de sustenidos. O Fá sustenido num clarinete, às vezes, é estupidamente estridente, um som que geralmente os cães não suportam e quase que estremecem numa crise praticamente convulsivante. Eu quero uma tonalidade triste e suave, a maior parte das tonalidades coroadas de bemóis, particularmente o Lá Bemol e seus tons vizinhos. Qual o sentido disso que escrevo? Quero escrever hoje sobre algo cortante, tenebroso, perigoso, mas, ao mesmo tempo alegre, vivaz, pois a “feitura” do Eu do ser humano é uma trajetória permanente de expectativas, vivências, experiências de ser/não ser, até morrer.
No conto escrito em 1968, “A descoberta do mundo”, de Clarice Lispector, citado pela escritora portuguesa, Clara Rowland, da Universidade da Nova Lisboa, num artigo publicado no livro “Um século de Clarice Lispector –Ensaios Críticos, editora Fósforo(2021) há uma citação de Clarice: “Antes de reconciliar com o processo de vida, no entanto, sofri muito, o que poderia ter sido evitado se um adulto responsável se tivesse encarregado de me contar como era o amor. Esse adulto saberia como lidar com uma alma infantil sem martirizá-la com a surpresa, sem obrigá-la a ter toda sozinha que se refazer para de novo aceitar a vida e os seus mistérios”.
Adiante, Clara Rowland volta a citar Clarice, agora sobre as reações que Lispector teve ao assistir o filme de Ingmar Bergman – “Persona”, filme que reflete questões relativas ao conceito de “pessoa” e “máscara”. Nossa Clarice associa com memórias paternas e escreve: “Acho que aprendi o que vou contar com o meu pai. Quando elogiavam demais alguém, ele resumia sóbrio e calmo: é, ele é uma pessoa. Até hoje digo, como se fosse o máximo que se pode dizer de alguém que venceu numa luta, e digo com o coração orgulhoso de pertencer à humanidade: ele, ele é um homem. Obrigado por ter desde cedo me ensinado a distinguir entre os que realmente nascem,vivem e morrem, daqueles que, como gente, não são pessoas”.
Assim, se descortina o processo de educar as crianças. Alguns pais têm a sensibilidade em acolher seus filhos com ternura e sabedoria em dar humanidade àqueles infantes selvagens por natureza, que merecem ser civilizados e preparados para enfrentar o conhecimento sempre surpreendente do viver. Outros são incapazes para dar condições a seus filhos no tocante a lidar com suas pulsões originais, criando “traumas graves”, traumas que obstrui o desenvolvimento de mentes razoavelmente sanas. Mentes sanas é uma fantasia, é um ideal de ser!
Enfim, querido leitor, consegui escrever após uns vinte dias de abstinência. Alegria, alegria, pois há momentos no escritor, de uma verdadeira morte de idéias, um silêncio vazio sem inspiração. Isso é terrível, assustador, pois a angústia de não criar entristece, e às vezes deprime, como se a gente não pudesse contar um sonho sonhado e esquecido.